04/08/2014
04/08/2014
Francis Wheen tem um livro interessante, cujo título é “Como a picaretagem conquistou o mundo”. Nele mostra à exaustão como fantasias construídas por pessoas carismáticas ou invencionices propagadas por quem está no poder conseguem, por momentos, cegar o bom senso e a compreensão racional dos fatos. In extremis, escreve Francis, os que pensam conforme aquilo em que desejam acreditar preferem abandonar por completo a realidade e a moral a renunciar a suas escolhas reconfortantes.
No caso das políticas de saúde do governo a picaretagem tomou conta de tudo. Médicos que não sabemos se são médicos ou agentes de saúde, já que o governo impediu os Conselhos de medicina de validá-los ou não, trabalhadores cubanos sem direitos configurando trabalho análogo à escravidão, estímulo a serviços de saúde sem médicos, como Casas de parto ou Centros de atendimento psicossocial, decisões técnicas tomadas sem sequer ouvir os principais técnicos em saúde que são os médicos, políticas equivocadas de prevenção da Aids, que na verdade tem provocado aumento de sua incidência em vários grupos, tentativas de mostrar, mesmo sem evidências científicas, que a maconha não causaria qualquer mal, sendo mera recreação, fechamento de leitos, numa campanha insana de “desospitalização” que amontoa pacientes em corredores, cadeiras e filas. Tudo isso com o argumento de que cuidados primários significam necessidade de menos leitos.
Essas, entre uma série de outras graves e criminosas abordagens, tem levado ao desmonte do nosso sistema de saúde. Ouvi, estupefato, de uma colega médica que, nos últimos dois anos, oito pacientes psiquiátricos atendidos no seu CAPS tinham ido a óbito, por suicídio ou assassinato. Tudo em nome da política antimanicomial, e da exaltação paroxística de acompanhamentos ambulatoriais, que findaram insuficientes.
Josef Goebbels, ministro da propaganda nazista dizia – É direito absoluto do Estado supervisionar a formação da opinião pública. Daí os picaretas e ideólogos do poder exigirem sempre controle da imprensa e censura. É uma forma de amordaçar a verdade, para fazer prevalecer o pensamento totalitário.
Mesmo as instituições mais sólidas e sérias tiveram seus momentos de delinquência. Veja-se a Igreja Católica e a mácula da inquisição. Foi um delírio típico do poder. E como esse rumo foi corrigido? Conciliando, silenciando. Se acovardando, se ajoelhando? Não, travou-se aí uma luta de vida ou morte entre os iluministas e o obscurantismo, que campeava naqueles dias. Foi a resistência e o ataque feroz ao fanatismo que reorientou aqueles desvios.
Hoje, o politicamente conveniente e oportunista não consegue distinguir o certo do errado, colocando tudo no bojo de manifestações culturais ou religiosas peculiares a uma tradição e, portanto, legítimas. Errado, o politicamente correto é a resistência, o combate ao obscurantismo que ameaça a sociedade.
Vivemos no Brasil a era da picaretagem. Quando um ex-presidente da república em vez de contestar informações com dados confiáveis, desqualifica uma analista funcionária de um banco e pede sua demissão, solicitando que seus bônus sejam pagos a ele, que sabe tudo, descemos ao mais abjeto da picaretagem e do obscurantismo.
Carl Sagan, no seu livro O Mundo Assombrado Pelos Demônios, nomeia o último capítulo de Os Verdadeiros Patriotas Fazem Perguntas. Nele faz comparativos entre tiranias e governos democráticos, ressaltando nestes a possibilidade de correção de malefícios, pelo processo eleitoral. As leis do congresso, as decisões das cortes judiciárias, as diretrizes presidenciais, todas elas são experimentos para aperfeiçoar os sistemas sociais, políticos e econômicos, assim as ideias políticas são testadas.
As pessoas são emocionais, manipuladas por políticos inteligentes, podem chegar até o mais alto grau de irracionalidade. Daí a importância de não silenciar, não se acovardar ao comodismo, não cair na armadilha fácil da informação sem comprovação, das verdades não submetidas ao contraditório, não se ajoelhar diante da ideologia fanática que silencia e destrói o indivíduo em nome de um suposto coletivo, que reza a cartilha do poder.
Juscelino Kubitschek dizia – Não tenho compromisso com o erro. A Picaretagem é um erro. Quando ela aparece, é o obscurantismo que a semeia.
É preciso combater o obscurantismo que quer impor suas crenças e paralisar a busca da verdade. Nessa busca nos depararemos com as adversidades. Quanto a isso, já nos prevenia Mário Covas – Diante delas só há três atitudes possíveis: Enfrentar, combater e vencer.
Geraldo Ferreira – Presidente da Fenam e do Sinmed-RN
*Editorial publicado no Novo Jornal, na coluna Sinmed em Ação, dia 03/08/2014.