Editor TN Online
Transferir gratuitamente a posse de algo a alguém. Essa é a definição de doação, segundo o dicionário da língua portuguesa. Porém, a palavra ganha nova dimensão para as pessoas que recebem um novo órgão de alguém. “É outra vida que se ganha. É sair de uma prisão para uma liberdade que você não acredita que pode voltar a existir”, define o lotérico Roberto Lisboa, que há sete meses recebeu um novo rim e abandonou as máquinas de hemodiálise. No Rio Grande do Norte, cada vez mais famílias têm concordado com a doação e proporcionado novas vidas a outras pessoas. Porém, ainda é alto o número de potiguares que se negam a doar.
Para a realização de um transplantes, há a possibilidade de que a doação seja feita por uma pessoa que teve morte cerebral ou mesmo que esteja saudável, dependendo de qual o órgão será doado. No caso dos mortos, a legislação atual faculta às famílias a decisão sobre a doação ou não. “É um momento de dor, todos sabemos, e é realmente um trabalho delicado chegar a uma família em um momento tão difícil e abordar sobre a possibilidade da doação. Hoje, muitas pessoas têm entendido que doar um órgão de um familiar é, de certa forma, manter um pouco dele entre nós”, explicou a coordenadora da Central de Transplantes do RN, Patrícia Maciel, afirmando ainda que é importante que todas as pessoas digam a familiares se no futuro pretendem ser doadores.
O trâmite para se chegar a um possível doador precisa ser rápido. Já com um banco de dados com as informações sobre todas as pessoas que precisam de novos órgãos no Estado, a Central de Transplantes atua com três equipes 24 horas por dia: a administrativa, que trata da logística da doação, atualização de cadastro e estado de saúde dos candidatos a receptores; com a Organização de Procura de órgãos (OPO), que atua diretamente no Hospital Walfredo Gurgel analisando possíveis doadores; e a equipe de Enucleação, que trata diretamente com o Banco de Olhos, onde são armazenadas córneas que podem passar até 14 dias para serem doadas.
saiba mais
Para que a Central tenha a informação sobre possíveis doadores em outros hospitais do Estado, é preciso que ocorram as notificações por parte das próprias unidades médicas pacientes que estão no chamado Glasgow 3, que é o nível imediatamente anterior à morte cerebral. Somente a partir daí, as famílias poderão ser abordadas sobre a possível doação. Essas notificações, contudo, têm caído.
Em 2014, o índice de notificações foi de 54,9 por cada milhão de habitantes (pmp). Neste ano, com dados do período até o fim de setembro, o número era de 41,1pmp. Por outro lado, as famílias têm sido mais receptivas à ideia de se fazer a doação de órgãos. “Em 2014, a recusa era de 57%. Neste ano estamos com nível de 50%. É uma redução importante, mas queremos fazer com que o número seja ainda menor nos próximos anos”, explicou Patrícia Maciel.
No caso da aceitação da doação por parte das famílias, um doador morto pode beneficiar várias vidas com a doação de córneas, fígado, rins, pâncreas, pulmão, coração e, em casos mais recentes, até parte de intestino e ossos. No Rio Grande do Norte, contudo, só há a realização de transplantes de rins, córneas e de medula óssea, que são realizados no Hospital do Coração, Onofre Lopes e Natal Hospital Center. Para os potiguares que precisam de cirurgias desse tipo e que não são realizadas no estado, a Central de Transplantes inscreve os pacientes no Registro Geral de Cadastro de Transplantes (RGCT) e também nas listas em estados vizinhos onde há a realização dos transplantes. O Estado busca a viabilização de novos hospitais para a realização de novos tipos de transplantes, que precisam se candidatar e atender normas técnicas definidas pelo Sistema Nacional de Transplantes. “Há necessidade de se trabalhar para o aumento das pessoas que aceitam a doação dos órgãos de familiares e também as notificações, mas o que buscamos também prioritariamente é a habilitação de novos hospitais no estado que possam fazer transplantes de coração e fígado”, explicou Patrícia Maciel.
Atualmente, 9% dos transplantes do país são cobertos pelo Sistema Único de Saúde. Quando a cirurgia não pode ser realizada no Rio Grande do Norte, o Estado arca com as despesas de deslocamento do paciente e acompanhante e concede ajuda de custo, ainda que inferior a R$ 50 por dia.
Corrente do bem
O que levaria um homem que é casado, pai de um bebê de seis meses, professor de Geografia e Jiu-Jitsu a encarar meses de exames, procedimento cirúrgico em outro estado, pós-operatório doloroso e a distância dos familiares? A resposta quem dá é Cláudio Custódio, de 34 anos: fazer o bem. Claudinho, como é carinhosamente chamado por amigos e alunos, doou 70% do seu fígado a um jovem de 18 anos de idade, que não tinha qualquer parentesco com ele. Os dois se recuperam bem.
A doação de órgãos entre pessoas vivas tem regras diferenciadas para doadores que são ou não parentes dos possíveis receptores. Se o doador não tem vínculo de até 4º grau com o receptor, é necessário que ocorra uma autorização judicial. O doador precisa atestar, através de declaração escrita de próprio punho, que não está sofrendo pressão da família de quem receberá o órgão e que também não está recebendo dinheiro para fazer a doação. O processo, porém, é rápido. “É preciso a autorização para garantir que pessoas não façam chantagens ou comércio de órgãos. É uma forma de resguardar tanto doadores quanto receptores”, explicou Patrícia Maciel.
Encontrar um doador vivo é um processo que depende muito de quem vai receber o órgão. Se em casos de doação medula óssea há a formação de um banco nacional de possíveis doadores, nos casos de outros órgãos os possíveis doares tendem se oferecer a buscar as informações sobre a compatibilidade com o paciente. Foi o que aconteceu no caso de Cláudio Custódio.
Sem doadores compatíveis ou em condições entre os parentes, a família do jovem Matheus Leandro, que precisava urgentemente do transplantes, buscou possíveis doadores através de mensagens em grupos de WhatsApp e em conversas com conhecidos. A busca era por um pessoa com peso entre 68kg e 83 e de 18 a 55 anos. Foi assim que Claudinho soube do caso. “Minha sogra comentou sobre o caso, que havia recebido a mensagem e pensei um pouco a respeito. No outro dia eu disse que iniciaria o processo para ver a compatibilidade”, disse Claudinho.
Após dois meses e meio de realizando exames de sangue e imagem, Claudinho e outro possível doador foram para São Paulo, onde houve a definição de quem seria o doador. “Alanderson (outro candidato a doador) era 14 anos mais novo do que eu, mas acho que me escolheram por minha veia biliar ser mais calibrosa. O fato de eu ser atleta e ser mais alto e magro também contribuíram”, disse Claudinho, que é campeão Panamericano de Jiu-Jitsu na categoria Master Faixa preta.
Após a doação, Claudinho disse que o pós-operatório tem sido tranquilo e que as dores têm diminuído. Para ele, cada minuto do processo valeu a pena. “Façamos todos uma corrente do bem. Se cada um fizer um pequeno gesto como esse, o mundo será um lugar melhor para os nossos filhos e para as futuras gerações”, disse o professor em mensagem compartilhada por milhares de pessoas nas redes sociais.
Vida nova
A rotina entre hospital e casa foi constante na vida do lotérico Roberto Lisboa, de 60 anos. Hipertenso, ele descobriu que seus rins estavam com funcionamento comprometido em 2012 e precisou de tratamento. A dieta regrada e acompanhamento médico constante fizeram com que ele conseguisse permanecer até o segundo semestre de 2014 sem a obrigatoriedade da hemodiálise. Porém, quando teve que iniciar com as três sessões semanais, Roberto percebeu a dimensão da dificuldade e do sofrimento que estavam no seu cotidiano. “Era como uma prisão e você tende a acreditar que não vai mais sair daquele castigo”, disse Roberto Lisboa. Contudo, ele saiu.
Durante o período de hemodiálise, o lotérico entrou na fila do transplante e dois de seus irmãos que poderiam ser possíveis doadores iniciaram a bateria de exames para que pudessem fazer a doação. Em sete meses, com a filtragem do sangue realizada através de máquina, Roberto recebeu a notícia de um doador compatível e foi chamado para realizar o procedimento. “Ser chamado em tão pouco tempo é muita sorte. Há pessoas que passam até anos na fila até conseguirem um doador. Muitas vezes, infelizmente, sequer conseguem”, disse Patrícia Maciel, da Central de Transplantes do RN.
Para que recebesse a doação de uma pessoa com morte cerebral, Roberto precisava, além da anuência da família do doador, estar fisicamente apto a receber o órgão e ser compatível à pessoa que faria a doação. Segundo Patrícia Maciel, vários são os aspectos a serem analisados para atestar que o órgão pode ser recebido pelo paciente.
“Cada caso é um caso e precisa de uma análise específica. Há relatos de um fígado de um senhor de 81 anos que foi doado e o receptor está muito bem. As únicas limitações gerais que existe é com relação às córneas, que devem ser de um doador de até 65 anos, e se o órgão é de uma pessoa infectada pela AIDS, que inviabiliza o transplante”, explicou Patrícia Maciel.
Operado no dia 13 de maio deste ano, Roberto Lisboa, às vésperas de completar sete meses do transplante, está bem e garante que sua vida mudou. “É outra vida que se ganha. É uma mudança total porque você sai de uma prisão para uma liberdade que você não acredita que pode voltar a existir. Cheguei a pensar que nunca mais sairia daquele castigo. Receber um órgão e ter a vida nova é algo tão bom que você não acredita”.
Quem
Central de Transplantes do Rio Grande do Norte
O que
Atua na logística da doação, atualização de cadastro e estado de saúde dos candidatos a receptores; análise de doadores com a OPO dentro do Walfredo Gurgel e uma equipe atuando diretamente no Banco de Olhos.
Como está a doação de órgãos no RN (2015)
50% das famílias de possíveis doadores mortos recusaram a doação;
Transplantes feitos no RN: 260 de medula óssea, rins e córneas
Lista de espera para doação:
Rim – 162
Córnea – 55
Medula Óssea – 30