O poder e ilusão das ideias: Atores de si mesmos

06/08/2025

O poder e ilusão das ideias: Atores de si mesmos

06/08/2025

O poder e ilusão das ideias: Atores de si mesmos

Em A Civilização do Espetáculo, Vargas Llosa reflete “de alguns anos para cá, sem que eu percebesse muito bem no início, ao visitar exposições, assistir a alguns espetáculos, ver certos filmes, peças de teatro ou programas de televisão, ler certos livros, revistas e jornais, passei a ser assaltado pela incômoda sensação de que estavam gozando com a minha cara”. O mundo parece ter sucumbido à trivialidade, à veleidade, à frivolidade. Vargas Llosa diz que migramos para a sociedade do Espetáculo “à medida que os fundamentos da cultura tradicional entravam em falência, e iam sendo substituídos por fraudes que afastavam cada vez mais do grande público as criações artísticas e literárias, as ideias filosóficas, os ideais cívicos, os valores e, em suma, toda aquela dimensão espiritual chamada antigamente de cultura que, embora confinada sobretudo a uma elite, no passado transbordava para o conjunto da sociedade e influía sobre ela, dando-lhe sentido para a vida e razão de ser para a existência, que transcendia o mero bem-estar material.” Agustin Laje, em Geração Idiota, escreve “o império da diversão põe um ponto final à cultura como algo cultivado, a cultura equivale agora ao entretenimento e ao consumo, em detrimento do estímulo às faculdades humanas”, e acrescenta “numerosos estudos começam a mostrar uma superficialização na inteligência humana”. No livro A Fábrica de Cretinos Digitais, do francês Michel Desmurget, vem a advertência “as redes sociais em demasia afetam negativamente as interações, a linguagem e a concentração, os três pilares básicos do progresso cognitivo.” O grande pensador da Sociedade do Espetáculo é Guy Debord. Para ele “o espetáculo é a ideologia por excelência, porque expõe e manifesta em sua plenitude a essência de todo sistema ideológico: o empobrecimento, a sujeição e a negação da vida real”. Na sociedade do espetáculo a encenação é o que conta, as telas projetam imagens que se convertem em pontos de referência para a vida, simplesmente por aparecer. Debord escreve que a sociedade se organiza entre os que aparecem e os que não aparecem, entre os que assistem e os que são vistos. A sedução é a marca do artífice no mundo do espetáculo, vem muito a propósito que ator pode ser farsante, artista ou impostor. A base da fama não é mais a genialidade no que se faz. Famoso é quem aparece, e aparece quem é famoso. Hoje, o reality show é a forma caricaturada e democrática da fama, a promessa é fazer o indivíduo famoso sem causa nenhuma, mesmo que nada tenha de importante para mostrar e seja absolutamente banal. Há pouco a fazer, num tempo em que as crianças simultaneamente aos primeiros passos já deslizam seus dedos nas telas. Pesquisa nos Estados Unidos mostram, segundo Agustin Laje, que crianças de zero a dois anos já passam 50 minutos diários em frente às telas. Esse número cresce explosivamente, alcançando na idade entre 13 e 18 anos 7 horas diárias. A grande ilusão, apenas uma falsa esperança, é que as telas estejam educando. Na verdade, o jogo é outro e se chama entretenimento. Dissimuladamente, o jogo é ainda mais bruto, toda uma ideologia que condiciona modelos de relações e comportamento. Com a morte da religiosidade e a desmoralização da política, caberia à cultura iluminar o caminho nas transformações velocíssimas que atingem o mundo, mas isso se mostrou impossível porque a cultura, atraiçoando essa responsabilidade, se orientou resolutamente para a facilidade, esquivando-se aos problemas mais urgentes e transformando-se em mero entretenimento. E não existe forma mais eficaz de entreter e divertir do que alimentar as paixões baixas do comum dos mortais. Escândalos, bisbilhotices, vulgaridades, intimidades, avançaram para o centro, enquanto as artes e as letras passaram a ser formas secundárias de entretenimento, atrás daquilo que os grandes meios audiovisuais, mesmo sem consistência, permanência ou impacto social, conseguem levar ao público. Caminhamos para um mundo onde os valores estéticos desaparecem, tudo é fluido, fugaz, instável, momentâneo, a própria identidade cambaleante faz do ser um camaleão, como gostam de se nomear artistas que se recriam e se reinventam. A supressão do eu, que se torna mutável, surpreendente e mesmo irreconhecível, garante a continuidade do show em que a vida se transforma. Nesse palco, os limites do verdadeiro são invadidos pelo falso, pela imposição da encenação diante da realidade ou verdade vivida. Debord conclui que a presença do verdadeiro é indistinguível do falso, diante “da presença real da falsidade garantida pela organização da aparência.”

Dr. Geraldo Ferreira – Médico, Presidente do Sinmed RN

Publicado no Jornal Agora RN em 06 de agosto de 2025

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