Artigo: O trágico sempre à espreita

27/07/2023

Artigo: O trágico sempre à espreita

27/07/2023

Artigo: O trágico sempre à espreita

Há um poder no irracional que reside no lado oposto da civilização, temer o caos é uma maneira de tentar evitá-lo. O medo é construtivo quando gera a apreensão preventiva, a tragédia está sempre à espreita e opera nas fronteiras dos acontecimentos do mundo, Heródoto dizia: “somos escravo da necessidade, essa é a dor humana: saber muito e nada controlar.” Da tragédia Édipo Rei, do grego Sófocles, fica a setença: “nenhum homem pode ser considerado afortunado até o momento de sua morte, pois nada é certo, portanto nada pode ser tomado como definitivo.” Robert Kaplan escreve em A Mente Trágica: “a catástrofe pode atingir a mais poderosa e bem sucedida das pessoas a qualquer momento, reduzindo a cinzas a mais encantadora das vidas.” Os gregos chamavam o destino de moira, a parte que cabe a cada um, e todos estão à sua mercê. Libertar-se da ilusão da permanência exige modéstia e consciência de que as circunstâncias que nos cercam sempre podem mudar de forma drástica e para pior, a vida envolve a luta contra forças poderosas e invencíveis. Dan Carlin em O Fim Está Sempre Próximo alerta para cenários onde o pior nos ameaça com uma idade das trevas, trazida por um vírus, um asteróide, fome, revoltas, colapso ambiental e social. Foram os grandes autores das tragédias gregas Ésquilo, Sófocles e Eurípedes, que juntos a Shakespeare reconheceram que havia algo de errado com o mundo, e que mesmo assim o mundo era belo ao mesmo tempo, a luta contra o sofrimento humano, injustiças ou destinos terríveis, mesmo quando as chances de vitória são pequenas, santifica a vida humana. Isso choca os que, aborrecidos ou perplexos, assistem bestializados os que enfrentam as grandes causas, mesmo com o sacrifício de suas vidas. Nos acontecimentos do cotidiano os interesses se chocam, entram em conflito, na maioria das vezes não há um embate entre o bem e o mal. Assim, a escolha seria mais fácil. O embate é na maioria das vezes entre dois bens ou entre dois males, e o que sobra é um bem que atropela o outro ou a escolha, se possível, de um mal menor, nisto reside a força da tragédia. Kaplan escreve: “aceitar a tragédia significa saber que muitas vezes as coisas correm mal e frequentemente tem consequências inesperadas.” O herói precisa de astúcia, para melhorar o mundo não dá para trabalhar contra as forças básicas da natureza humana, é necessário pactuar com elas. Outro documento fatalista, que reconhece com profundidade a condição humana são Os Artigos Federalistas, dos Pais Fundadores americanos. Neles, Alexander Hamilton acede “a plenitude da vida está nos riscos da vida”, mas reconhece “os homens são ambiciosos, vingativos e vorazes.” Foi o erro de avaliação de Rousseau, que contra Hobbes que sempre enxergou o mundo como um campo de batalha, Impregnou o homem moderno com o lirismo ingênuo que seu poder intelectual pudesse recriar o mundo idílico e bom que ele supôs no início dos tempos. Mas não é assim, homens e mulheres bons e maus vagam em conflitos uns com os outros, todos estão talhados em um molde rudimentar, em contínuo acabamento. A civilização é uma busca aflita para celebrar nossa humanidade e nos liberarmos de nossa violência e das forças do destino. Robert Kaplan traz das tragédias gregas o alerta: “se um homem não tem modéstia, os deuses mais cedo ou mais tarde o obrigarão a ter”, e isto lhe será enfiado goela abaixo com extremo sofrimento. A razão dificilmente prevalece sobre a paixão ou a harmonia sobre a violência. Os tempos de paz que a humanidade atravessa podem não dar aos mais jovens a visão da tragédia que acompanhou toda história do mundo nas formas de guerras, fome, epidemias ou catástrofes ambientais. Todos professores violentos a mostrar a incapacidade humana para controlar o imponderável. Freud escreveu: “a sociedade civilizada está perpetuamente ameaçada pela desintegração”. Mesmo as sociedades mais gloriosas estão em permanente risco de colapso, grandes impérios ruíram por decadência moral e social, caindo na barbárie, num esfacelamento de hierarquias e instituições que se refletiram no governo, no trabalho, na religião, e nas relações sociais. A tragédia se monta sempre num enredo em que há a destruição da ordem, vinda por uma ação que gera fúria, tumulto e grande sofrimento, até que a ordem seja reestabelecida. Nestes tempos modernos onde as pessoas pensam suas vidas como previsíveis e controláveis, o caos é algo que soa como impensável, mas ele nos tocaia. Somos prisioneiros de nossas necessidades, e na tragédia grega a estória só se completa quando o herói se dá conta de sua própria insignificância frente a forças descomunais que o antagonizam. O destino sempre leva a melhor quando as pessoas não pensam tragicamente, pensar no trágico não é fatalismo nem desespero, pensar na tragédia é compreensão de que há um mecanismo mais elevado, sobre o qual não temos qualquer controle, por isso como necessidade deve estar nos nossos cálculos e ser aceita. Os gregos entendiam que a força e os talentos humanos despertavam inveja nos deuses, essa seria a explicação porque tantos bons sucumbem à tragédia, por meio do destino e forças insuperáveis. Shakespeare inverte as coisas, criando a tragédia a partir das fraquezas da natureza humana, suas ambições e instintos insuperáveis. O temor respeitoso ante o desconhecido e imponderável é a única maneira de escapar à tragédia. Toda decisão importante caminha no fio da navalha, buscando construir um destino podemos tecer uma teia indicifrável que sinaliza apenas que o futuro é um enigma. Roger Scruton em As Vantagens do Pessimismo coloca o futuro como bem vindo para alguns e causa de alarme e apreensão para outros. Alguns veem o futuro em que aspectos preciosos da condição humana como liberdade, amizade, amor tenham desaparecido, restando uma paisagem árida, sem os traços de nossos reconhecidos confortos; outros reagem dizendo que evidentemente não estaríamos à vontade neste mundo novo, “mas tampouco importa porque não existiremos mais nele mesmo.” Os profetas são pessimistas sistemáticos, compreendem as imperfeições do mundo como definidoras dele. Uma mão invisível parece conduzir o mundo tanto para maus quanto para bons resultados, não previstos anteriormente, mas é fato que liderança e orientação são necessárias para administrarmos as emergências. Devemos nos acautelar contra a proliferação de riscos que surgem quando as pessoas deixam de ser pessoalmente responsáveis por seus atos. Os otimistas escrupulosos sabem que vivem em um mundo de limitações e assumem riscos como parte do desejo de melhorar as coisas. Uma mistura de coragem e medo parece levar aos melhores resultados para se evitar as catástrofes. Em César, Shakespeare nos lembra: “o covarde morre muitas vezes antes de sua morte. O valente nunca prova o gosto da morte mais de uma vez”. A nossa própria incapacidade para conhecer e dominar tudo, diz Bowra, “nos deveria trazer paz de espírito”, afinal como nos versos angustiados de Prometeu Acorrentado: “Ninguém pode lutar contra o inevitável”.

 

Dr. Geraldo Ferreira – Médico e Presidente do Sinmed RN

Artigo publicado no Jornal Agora RN dia 27 de julho de 2023.

whatsapp button