27/04/2023
27/04/2023
Hobbes defendeu a doutrina segundo a qual o estado da natureza é um estado de guerra. Alguma coisa motivaria nosso aplauso ou indignação pelo pensamento de nosso proveito ou sofrimento. Adam Smith, em Teoria dos Sentimentos morais, diz que “uma grande ambição, um desejo de verdadeira superioridade, de guiar, de dirigir, parece ser inteiramente peculiar ao homem”. Como não temos experiência imediata do que outras pessoas sentem, somente podemos formar uma ideia da maneira como são afetados se imaginarmos o que nós mesmos sentiríamos numa situação semelhante. Daí nasce a empatia. Sua quase ausência é característica do narcisismo.
“Toda época desenvolve suas próprias formas peculiares de patologias, que expressam de forma exagerada sua estrutura de personalidade subjacente”, escreve Christpher Lash, em A Cultura do Narcisismo. Novas formas sociais desenvolvem novos tipos de personalidade, novos modos de socialização e formas de organizar a experiência. A busca por interesses pessoais na forma de ganhos e riqueza transformou-se na busca do prazer e da sobrevivência física. O grande profeta do individualismo revolucionário, o Marquês de Sade, defendia a aceitação sem limites dos prazeres, numa utopia sexual na qual todos tem direitos sobre todos os outros. Escreve Lash “No estado de anarquia organizada resultante, o prazer, como Sade foi o primeiro a perceber, torna-se a única preocupação da vida.” A razão já não é capaz de estabelecer limites à busca pelo prazer e satisfação dos desejos. O Narcisismo, é um mergulho no privatismo, em busca de uma ética de autopreservação, de sobrevivência ante a visão de um mundo inclemente. A devastação da vida pessoal do mundo moderno levou à conclusão de que se as relações pessoais estão desgastadas, melhor que não se invista demais no amor e na amizade para se evitar a dependência dos outros. Porém estas são as condições básicas responsáveis pelo agravamento da crise que acomete as relações pessoais. Lash registra: “viver o momento é a paixão predominante, viver para si e não para seus antecessores ou para a posteridade” perde-se então a noção de continuidade histórica, a noção de que as vidas estão encadeadas numa sucessão de gerações que tem origem no passado e continuidade no futuro. Há no narcisista, que se alimenta da ideia de superioridade, mania de grandeza, atenção e admiração dos outros, um desespero devastador com a ideia de decadência. Para Kernberg, “em uma sociedade com pavor da velhice e da morte, o envelhecimento reserva um terror especial para aqueles que temem depender dos outros e cuja manutenção da autoestima exige a admiração geralmente dispensada à beleza, à juventude, à celebridade ou ao charme.” Sua insegurança e falta de empatia o levam à manipulação, quando não oprimindo, culpando os outros ou se fazendo de vítima. O narcisista sofre, porque faltam a ele a identificação com valores éticos ou artísticos que se estendam além dos interesses imediatos, curiosidade intelectual, conforto emocional vindo das relações felizes do passado. Sem o consolo da identificação com a continuidade histórica, o narcisista vê que uma geração mais nova possui agora as fontes de gratificação que ele estimava, beleza, riqueza, poder e criatividade. Apesar de transparecer confiança e elevada autoestima, o Narcisista não suporta repreensão ou crítica. Duvidando de si mesmo remói-se em sofrimento, buscando uma forma de ser validada. Warhol confessa “sou obcecado pela ideia de me olhar no espelho e não encontrar ninguém, nada”. Christopher Lash avalia “todos nós, atores e expectadores vivemos cercados de espelhos, neles buscamos reforçar nossa capacidade de cativar e impressionar os outros.” A vida Moral depende de três pilares: “valor, virtude e dever”, escreve Roger Scruton. A moralidade e a autoconsciência nos colocam num estado de juízo sobre nós mesmos. No mundo mais antigo, a boa estima era angariada pela apreciação dos feitos, hoje se busca ser exaltado por atributos pessoais, o desejo ardente é de ser admirado, não estimado, “o que importa é a fama, o glamour e a excitação da celebridade”. Sucesso era a soma de riqueza, fama e poder, hoje o sucesso mundano é em grande parte função da juventude, do glamour e da novidade. A glória agora é mais efêmera do que nunca, e todo sucesso precisa ser ratificado pelo público, todos tem que se manter à vista, toda forma de atuação se tornou um espetáculo. Daniel Boorstin indica “as pessoas falam o tempo todo, não das coisas em si, mas de suas imagens.” A exibição de imagens vitoriosas, onde o reconhecimento e o aplausos são mais importantes que os feitos em si, mostra que o modo como as pessoas se veem passa a ser a imagem que os outros tem delas. O indivíduo passa a se sentir não mais que a imagem refletida nos olhos alheios. A presença dessa informações simbolicamente mediada gera a descrença na realidade de um mundo externo. Passa a existir apenas o Eu performático, procurando lapidar um papel para si, buscando reforçar a capacidade de cativar e impressionar os outros. Tom Wolfe e outros crivaram os anos 1970 como “a década do self”. De lá para cá o Narcisismo se acentuou, com um colapso no controle dos impulsos, declínio do autodomínio e dependência da opinião alheia. No seu livro Guia de Sobrevivência para Vítimas de Narcistas Malignos, o Dr. Kurt Mendoença, neurocirurgião e especialista em Direito Processual Civil, após descrever o modus operandi do abuso psicoemocional ou mesmo físico, cita regras para se libertar dos abusadores narcísicos: libertar-se de culpas, fechar qualquer contato, não responder provocações e iniciar vida nova. “Não fique olhando para o passado, se lamuriando, cuide do presente, preparando o futuro que é o minuto que começa já.” E anima: “Levante-se dentre os mortos e seja bem-vindo de volta à vida”.
Dr. Geraldo Ferreira – Médico, Presidente do Sinmed RN
Artigo publicado no jornal Agora RN em 27/04/2023