27/01/2022
27/01/2022
“Em uma era de mídia disseminada, é difícil não conceber a vida como um drama em curso, com linearidade, subtextos e desfechos. Narrativa costumava ser uma palavra usada, sobretudo por escritores de ficção e dramaturgos. Agora tornou-se comum não só para escritores de todos os tipos, mas para políticos, professores, militantes, publicitários, qualquer pessoa que sinta a necessidade de um enredo convincente”, escreve Ralph Keyes em A Era da Pós-Verdade, onde analisa a desonestidade e enganação na vida cotidiana. Vive-se o tempo onde mentir se tornou uma transgressão sem culpa, todos manipulam, falseiam e enfeitam a verdade, segundo seus interesses, e esperam o melhor. Os abusos contra a verdade e os fatos fazem da pós-verdade uma forma de mentir sem o estigma de ser desonesto. Com a família, a religião e os laços de comunidade sob ataque, os conceitos éticos e morais são abalados, enquanto novos mentores Morais tentam assumir o papel de construir um admirável mundo ético novo. Keyes avança: esses mentores modelam o comportamento pós-verdadeiro. Especialistas, mesmo inventados, vem à cena sempre que se tenta impor uma narrativa, e a reformulação e recriação dos fatos, gerando mitos úteis, criam uma nova verdade. Obscurecer o limite entre a verdade e a mentira é um passe livre para enganar, sem culpa ou constrangimento, um público muitas vezes receptivo a argumentos baseados em ambiguidades. Poucas áreas se assemelhem à Política em sua tendência a comer pelas bordas a veracidade, não há fim para a dissimulação, nem repouso para o papel de impostor e vigarista. O glamour e a apresentação substituíram os padrões morais, o charme importa mais que o conjunto ético. A ideologia totalitária é receptiva ao conceito de verdade subjetiva, já que a objetividade pode não acomodar sua visão. Encontrar a verdade hoje se tornou obra de envergadura, as psicoterapias aceitam acriticamente a veracidade das declarações dos pacientes, com seu mundo de fantasias sendo mais importante que o mundo real, os advogados trabalham com o instrumento da ficção legal, que os leva a criar algo como verdadeiro, mesmo podendo ser falso, afinal verdade é o que o juiz ou o júri acata, o meio acadêmico lida com a falsificação de títulos e diplomas e lapsos éticos em trabalhos baseados em dados duvidosos. Os pós-modernista se veem como intelectuais criativos e astuciosos, defendendo a relatividade da exatidão e o perigo da verdade objetiva. A ideia de que a verdade é relativa, construída socialmente, deixou a academia e mergulhou profundo na sociedade. Livros e filmes baseados na história, a não ficção romanceada, criam estórias e fatos que nunca existiram, sob o argumento de licença poética, mas alimentam no leitor a impressão de serem factuais. A grande mídia abraçou a possibilidade de, usando teorias da pós-verdade, criar livremente narrativas com enredos dramáticos e coerentes, mesmo que fingidos. Não se precisa inventar completamente as notícias, eventos preparados, declarações encomendadas, publicações combinadas em redes sociais, notícias em veículos insignificantes para repercutirem nos grandes, tudo isso impacta, se propagando e modelando em imensa escala o mundo real. A Internet é “uma mixórdia de boatos sendo transmitidos como fatos, comunicados de imprensa publicados como artigos de notícias, publicidade enganosa, fofocas maliciosas e golpes categóricos”, escreve Keyes, combinando informação com desinformação, nenhum boato é ultrajante demais, nenhum delírio ultrapassa os limites. Interagir no online exige a guarda levantada. Agências de checagem de informações são um meio de verificação, se não estiverem, por sua vez, sob controle de mentirosos e manipuladores. A sociedade ocidental se tornou demasiado tolerante com a mentira. Ryan Holiday conta que Ary Donovan, ex-ministro do Trabalho dos EUA, injustamente difamado, perguntava atônito e indignado, após ser inocentado pela justiça das acusações falsas que arruinaram sua carreira: “Em qual Guichê eu passo para pegar a minha reputação de volta?”.
Dr. Geraldo Ferreira Filho – Médico e Presidente Sinmed RN