23/11/2023
23/11/2023
O Homem tem uma natureza dividida, ele é espiritual e racional. O Ocidente construiu-se de heranças, dos gregos extraímos a razão, dos antigos Israelitas a base espiritual. A imagem de dignidade específica do homem vem de sua participação no divino. Segundo Voegelin, o homem é “Teomórfico”, ou feito à imagem de Deus. O pensamento dominante da modernidade afastou a ideia de Deus como criador de todas as coisas, essa desconexão da espiritualidade levou à brutalidade do real, porque, explicita Voegelin: “Não se pode desdivinizar a si mesmo sem se desumanizar”. Desapercebidos do que perderam, as pessoas vagam em relativo conforto e riqueza, mas infelizes, “se desmanchando”. Mesmo assim, ninguém reconhece suas limitações, nem se aceita vulnerável, líderes viraram fraude, governados não conseguem identificar a impostura. É uma situação doentia, “mas não há mais deuses que possamos evocar para nos ajudar”, escreveu Carl Jung. Essa realidade faz os homens se colocarem como deuses, capazes de tudo, eliminar a pobreza, a guerra, as doenças, a infelicidade. Hesíodo escreveu que há três tipos de homens, os que refletem sobre as coisas, os que ouvem os pensadores e os que não pensam nem ouvem, esses são os estúpidos e os perigosos. Os primeiros ideólogos, ao rechaçarem a religião e a metafísica, acreditavam na possibilidade de criar um sistema de leis naturais que poderiam garantir os fundamentos da harmonia e bem-estar universais. John Adams chamou a ideologia de “Ciência da idiotice”. Em geral, os ideólogos sempre se posicionaram contra a religião, a tradição, as convenções, os costumes, as normas e as antigas constituições. A descida ao caos tem sido progressiva e acelerada, estupidez segue estupidez e erro a erro. A vida é vivida na base da tagarelice, da frivolidade, da dissimulação, dos caprichos e fantasias. É diária a negação da verdade, da realidade, do bem e do bom-senso. Tudo mergulhou, como alertava Bento XVI, na ditadura do relativismo, uma teoria e um modo de pensamento que não reconhece nada definido e deixa apenas o próprio ego e a própria vontade como medida final. Isso culmina, de forma prática, na ideia de equivalência, corroendo a noção de ordenamento, categorização e graduação. Os exemplos surgem sob o disfarce da equivalência, do relativismo e a sua expressão quotidiana irrompe na mesquinha tirania do politicamente correto. A tudo é possível absorver, absolver, rejeitar ou condenar, porque uma regra não se aplica igualmente a todos os povos, lugares e culturas do mundo. O resultado é uma incapacidade “liberal” de defender a tradição, a cultura, os valores, a religião, a história e a beleza da civilização ocidental. O suposto avanço do racionalismo desde o século XIX não levou a uma maior compreensão, mas a uma maior confusão. Mas, “Sentimos e experimentamos que somos eternos”, dizia Spinoza. Tal é o fundamento de existir uma sociedade, uma civilização, uma história. O que vivemos nunca poderá ser revogado, nunca poderá tornar-se um nada. “O acontecido não desacontece, o que ingressou no real está inscrito para sempre no registro do ser”, completa Olavo de Carvalho. A substituição da estrutura da realidade por uma crença, uma ideia, uma doutrina, ou um consenso é o que constitui o tope da estupidez: o império da ideologia. Com o materialismo científico, hospício da fantasia, já não se procura moldar o mundo a uma ideia, mas criar uma segunda realidade, sem conexão com a primeira e sem se incomodar em falseá-la. O último expediente da ideologia é rebaixar cada fato ou ação humana a um constructo social, onde tudo é produto cultural, discurso, construção arbitrária. Sendo tudo manipulável, ao se proibir palavras e manipular gêneros imagina-se poder mudar a natureza das coisas. Russell Kirk destaca: “Vivemos numa época em que o significado de palavras antigas, como tantas outras coisas, é incerto. “As palavras torcem, / Elas rangem e às vezes quebram sob o peso”, escreveu T. S. Eliot. No começo era a palavra. Mas hoje, a Palavra tem que enfrentar a gigantesca Ideologia, que perverte cada verbo, o pronunciado e o escrito”. É o delírio da estupidez configurado na ideologia. “Uma alta cultura”, escreve Roger Scruton, “é a autoconsciência de uma sociedade. Ela contém as obras de arte, literatura, erudição e filosofia que estabelecem um quadro de referência comum”. A alta cultura é uma conquista precária, precisa ser sustentada por um sentido de tradição. Quando as pessoas degradam as formas e a linguagem, buscam falsificar a consciência de verdadeiro e falso. Conhecimento, tecnologia, entendimento legal e político, obras de arte, literatura e música evocam a condição humana. A vida da mente se preocupa com o verdadeiro, o belo e o bom. Marginalizar o conceito de verdade, buscando atitudes emocionais, morais e políticas em cada palavra decorre da teoria da ideologia de Marx que aponta conceitos, hábitos e modos de ver o mundo como devido à socioeconomia, não à sua verdade. A ideia de justiça se transmuda de direitos e responsabilidades, para imposição de discurso e poder. Foucault reduz a cultura a um jogo de poder e erudição na luta entre oprimidos e opressores. Scruton registra : “As imagens de brutalidade e destruição na arte moderna, as histórias de modos de vida depravados e repugnantes nos romances de hoje, a música violenta e angustiante de nossa época – tudo isso são formas de egotismo.” Quando a sociedade se tornou mais urbana e menos religiosa, o culto da feiura se estabeleceu. Salman Rushdie confessa: “tenho medo de que um dia a feiura do mundo possa vencer sua beleza.” “O século vinte foi no espiritual e no político um tempo de decadência”, escreveu Russel Kirk. Há algo de errado com todos os nossos líderes, eles não estão devidamente orientados, eles estão profundamente desorientados. E pior, como desertores da reverência e da verdade, ao aceitar o atrevimento de mentiras irreverentes, reforçam um mundo de fantasia infantil. Se a sociedade fracassar em conter essas falsificações, perpetua consigo mesma a mais alta traição imaginável. A falsa realidade assim estabelecida não pode aceitar ninguém que fale a verdade sobre o passado ou o presente. A ideia por trás de tudo é criar um mundo de acordo com cada vontade, criar ali uma realidade onde sequer traços dessa realidade existe. Desiludido diante da incapacidade das lideranças de defender os valores de uma herança milenar, Voegelin sentencia: “Nossa elite consiste numa ralé”. Apalermada, vai criando o caos e a desordem por causa de sua tolice. “Onde estão os sábios? Quem se curva à razão?” Pergunta Jeffrey Nyquist em As Mentiras que acreditamos.
Dr. Geraldo Ferreira – Presidente do Sinmed RN
Publicado no Jornal Agora RN em 23/11/2023