Artigo: Literatura e criação da psique humana e da civilização

07/04/2022

Artigo: Literatura e criação da psique humana e da civilização

07/04/2022

Artigo: Literatura e criação da psique humana e da civilização

 

A natureza da nossa cultura é eminentemente literária. Como o mundo é visto, interpretado, os papéis humanos, a própria civilização foi moldada pela literatura, espaço onde o ser humano atingiu seus limites em termos de estética, cognição, moralidade e espiritualidade.  Escrevendo sobre as peças de Shakespeare e seu poder de deslumbramento, Harold Blomm diz: “As peças inundam meu consciente e me leem”. A contextualização arbitrária e ideológica de nossa época busca destruir toda riqueza da tradição literária, reduzindo-a a um pacote de bobagens que misturam colonialismo, patriarcalismo, violência e preconceito. O literário está acima do ideológico e não depende do filosófico, o estético é “irredutível à ideologia ou metafísica”. A fuga do estético ou sua repressão é endêmica em nossa época. A originalidade e a estética são equivalentes à auto-suficiência, vista como inimiga do coletivismo insano que exalta a comuna, o disforme, o repulsivo, o subversivo, em todas as apresentações das artes. A escrita como a conhecemos surgiu por volta de 800 a.c., pelos fenícios, que compreenderam as dificuldades da antiga escrita, como a egípcia, baseada no mundo dos objetos, cujos sinais seriam infinitos. O ato de escrever seria agora ligado aos sons da fala. Não havia no início as vogais, acrescidas pelos gregos a seguir. O novo alfabeto surgiu perfeito para as histórias da Guerra de Tróia, e foi a primeira coisa que os escribas registraram. Estava imortalizado o hexâmetro dos bardos que entoavam em seus caminhos as aventuras de Aquiles, Agamenon, Heitor e Helena. Graças à epopéia de Homero e a escrita simplificada, a Grécia se tornou a sociedade mais letrada que o mundo já conhecera, provocando a explosão extraordinária da literatura, do teatro e da filosofia. Alexandre,o Grande, para onde ia levada a Ilíada consigo, conquistou a Pérsia e avançou até os confins do mundo, chegando ao Afeganistão e a Índia. Aos bárbaros, assim chamados pela limitação linguística e seus sons barbarbar, tinham contato com a língua e a escrita grega, e a Ilíada era o veículo pelo qual se podia aprender a ler e a escrever. O grego se tornou a língua universal. Culturas escritas mais antigas seriam resgatadas e decifradas milênios após a sua morte. Assim foi com os hieróglifos e com os caracteres cuneiformes da Suméria que, descobertos e decodificados revelariam histórias de civilizações extraordinárias como a egípcia e a Assíria e revelariam na Mesopotâmia um rei magnífico, Assurbanípal, e um texto assombroso, a Epopeia de Gilgamesh. Copiada e levada longe, a Epopeia permitiu a conquista de territórios, formação de impérios, com a escrita viabilizando a administração e a economia. Assurbanipal tomou Gigalmesh como modelo de suas conquistas e adotou seus títulos: Rei Poderoso, Sem Rivais. Na Epopeia havia a história de um mundo ressurgido após um dilúvio, onde uma arca salvara humanos e animais para repovoarem a terra. Um povo exilado habitava a Babilônia, e precisava de um centro cultural que unisse  e desse força a essa comunidade, garantindo sua sobrevivência. Um texto extraordinário cumpriria esse papel e seria venerado, gerando adoradores que o levaria para onde quer que fossem. “A ideia da escrita sagrada passou a ser central para o Judaísmo, o Cristianismo e o Islamismo, o que hoje chamamos religiões do livro”, escreve Martin Puchner em O Mundo da Escrita. “A característica mais marcante da literatura sempre foi sua capacidade de projetar o discurso no espaço e no tempo”, diz Puchner. A literatura moldou o mundo através de leitores extraordinários como Alexandre e Assurbanípal, e também pelos textos sagrados organizados por Esdras na Bíblia Hebraica, pelos Evangelhos que apresentam Jesus como realização das profecias escritas na Bíblia, por Paulo, que tinha como método de influência as cartas às comunidades cristãs, ou Maomé, cujos seguidores transcreveram as palavras que ele recebia por inspiração divina e formaram o Alcorão. Romancistas, poetas, filósofos, cientistas, economistas continuaram catando as palavras, aperfeiçoando línguas e criando histórias que contam do mundo e projetam novos mundos.

 

Dr. Geraldo Ferreira – Médico e Presidente do Sinmed RN

 

Artigo publicado no Agora Jornal dia 07 de abril de 2022.

whatsapp button